A Verdadeira Nova Economia
Em todo o mundo, há uma glorificação da “nova economia” em detrimento da “velha”, em uma clara elevação do sentimento de importância e disrupção atribuído às startups, habitat dos millennials.
No Brasil, o pedestal dos pitches é ocupado, sobretudo, por empresas dos segmentos de transporte (Uber, Cabify), entrega (iFood, Uber Eats, Rappi) e fintechs (Nubank, PicPay, Stone e inúmeras outras).
Porém, a epidemia de COVID-19 está trazendo uma nova luz e um momento de reflexão ao tema, bem como questionando a própria capacidade de sobrevivência de muitas startups.
Antes de nos aprofundarmos, é importante esclarecer o que caracteriza uma empresa da nova economia.
O Conceito de Nova x Velha Economia
Há cerca de três décadas, adquiriu-se o hábito de classificar as empresas como parte da velha ou nova economia.
As velhas empresas são representadas, majoritariamente, pelas indústrias de base e negócios tradicionais, vinculados a bens materiais, o segmento produtivo da sociedade.
Já a nova economia, que surge principalmente com o advento da internet, caracteriza-se pelo capital intelectual, transferindo valor dos bens tangíveis para intangíveis, valorizando em teoria as pessoas, privilegiando a intermediação de negócios e possibilitando um crescimento sem barreiras através do uso da tecnologia e da comunicação global.
Tipicamente, empresas da velha economia possuem alto investimento em CAPEX (Capital Expenditure), ou seja, na aquisição de bens. Quando migram parte do seu custo para OPEX (Operational Expenditure), muitas vezes têm o objetivo de deduzir despesas por motivos fiscais. Seus valores são refletidos principalmente pelo índice Dow Jones na NYSE (New York Stock Exchange), formado por empresas como Walmart, McDonald’s, Coca-Cola, Procter & Gamble, Johnson & Johnson e IBM.
As startups da nova economia são mais bem representadas pelo índice NASDAQ, que reúne as maiores empresas de tecnologia dos Estados Unidos, como as FAANG (Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Alphabet/Google), e várias outras, como Uber (cujo IPO foi em 2019) e Tesla. Muitas destas empresas possuem um alto investimento em OPEX, por terceirizar completamente grande parte das operações e depender mais de pessoas e tecnologia do que bens capitais. É exatamente esta diferença, de ter menos assets, que faz com que este tipo de empresa tenha uma enorme capacidade de escalar e modificar seu plano de negócios (também conhecido como “pivotagem”).
Obs.: cabe observar que algumas destas empresas possuem um pilar em cada economia, se qualificando como híbridas. Por exemplo, a Apple atua como uma empresa tradicional ao fabricar computadores e dispositivos, enquanto vende e intermedia serviços como uma bem-sucedida empresa da nova economia.
Como Agem (de Verdade) Algumas Empresas da Nova Economia
Existe um romantismo na sociedade millennial ao redor das startups e empresas “disruptivas”. Elas são vistas como que representando o rompimento do establishment.
Sob esta ótica aparentemente um tanto distorcida, as fintechs representariam a disrupção dos bancos pelo simples motivo de, além de terem nascido no digital, oferecerem taxa zero ou outros “mimos”, na linguagem que gostam de adotar, para conquistar o consumidor.
Enquanto isso, empresas de entrega e outras startups “modernosas” se posicionam como bastiões de uma nova cultura corporativa, empregando um time diversificado de pessoas e adotando bandeiras liberais com relação a praticamente todos os assuntos, inclusive a própria legislação.
Para se ter um resumo deste assunto de forma brilhante, é preciso assistir a um vídeo do Gregorio Duvivier, chamado “Delivery”, que é parte do programa “Greg News”, da HBO. Mas antes, é preciso esclarecer: não sou admirador do Gregorio Duvivier, não simpatizo com muitas de suas ideias e considero que a carga tributária trabalhista no Brasil é um contrassenso produtivo que prejudica muito a economia e as relações de trabalho.
Dito isso, Gregorio voa baixo neste vídeo ao revelar algumas relações no mínimo questionáveis da empresa a respeito de seus principais assets (neste caso, os entregadores). É preciso assistir para formar opinião:
Ele não é o único. A BBC, em 08/02/20, publicou uma excelente matéria que mostra como apps de entrega estão levando pequenos restaurantes à falência.
Aparentemente, o discurso de algumas destas empresas com relação à “cultura organizacional” parece não ser mais do que uma camada de verniz para disfarçar, na verdade, negócios bastante capitalistas, à moda antiga.
Como Funciona o Financiamento de Startups e Empresas da Nova Economia
Para uma startup existir, alguém precisa colocar dinheiro. Seja pouco ou muito, sem ele nenhum negócio sai do papel.
É aí que se inicia uma relação de negócios bastante conhecida. Startups, aceleradoras, coworkings e espaços comunitários são apenas algumas das peças presentes em um “ecossistema” que visa, na última linha, criar riqueza. O dinheiro por trás de toda esta operação ainda sai (ou saiu, no início) de bancos e investidores que, por definição, pertencem à velha economia.
O Capital de Risco (Venture Capital) é basicamente um financiamento que funciona como uma aposta. Na tentativa de diversificar investimentos e, quem sabe, ter a chance de multiplicar o capital por dezenas, centenas ou milhares de vezes, pessoas e empresas investem em startups com potencial para escalar seu negócio da mesma forma que investiriam em um mercado de ações, porém com um potencial de risco e recompensa (risk/reward) ainda maior. Quer coisa mais “velha economia” do que isso?
De fato, não há absolutamente nada de novo no conceito hollywoodiano de venture capital. Um dos mais notórios registros deste tipo de investimento data de 1957, quando um aporte de USD 70 mil retornou, 11 anos mais tarde, USD 355 milhões aos seus investidores, em um bem-sucedido IPO com taxa de retorno de 1.200 vezes. A empresa em questão foi a DEC (Digital Equipment Corporation), desconhecida de muitos mas pioneira que pavimentou o caminho para as grandes corporações de TI dos dias atuais.
Com o coronavírus e a crise da COVID-19, a situação das startups não poderia ser pior (confira o artigo da CNN) – muitas terão dificuldade de sair do papel ou mesmo continuar operando, em parte pela escassez de capital (aquele ativo tão “velha economia”), em parte pela dificuldade de escalar (haja visto que a economia crescerá em ritmo muito mais lento) e, sobretudo, porque muitas operam em mecanismo de fluxo de caixa negativo (negative cashflow) em troca de crescimento, o que levou à criação do termo burn rate ou “queima de capital”. Um dos melhores exemplos para entender por que isso existe é o artigo do Dinheirama sobre burn rate.
Como podemos perceber, é fato que os mundos se misturam e fica difícil dissociar uma categoria de empresa da outra. Portanto, até a nova economia se consolidar a ponto de não depender da velha, ainda teremos os dois mundos coexistindo.
Uma “Nova Visão” Sobre as Empresas da Nova Economia
Se quando observamos mais de perto as empresas da nova economia, elas se parecem muito com as empresas tradicionais, após a crise da COVID-19, surgiram diferenças que colocam as primeiras em patamar de igual ou menor qualificação.
Eu escrevi alguns artigos em parceria com meu colega de Rede Magic Rafael Casanova, que publiquei no Blog da Magic Web Design. O objetivo é ajudar as pessoas e empresas a entenderem o que os bancos estão fazendo por elas durante este período de crise.
O resultado foi:
- Os grandes bancos (velha economia) estão oferecendo vários pacotes de apoio frente à crise do coronavírus. A solidez financeira dessas instituições está possibilitando que ajudem os consumidores e empresas com prorrogação de parcelas de empréstimo, capital de giro e outras facilidades, além de estarem contribuindo de forma significativa para a saúde pública através de doações e projetos.
- Os bancos digitais (nova economia) não estão fazendo quase nada para auxiliar na crise da COVID-19. Até o fechamento do artigo referido, em 13/04/20, a maior parte das fintechs encontrava-se em estado catatônico e, quando finalmente fizeram algo, as medidas foram tímidas, de pouca valia e grosseiramente inferiores àquelas praticadas pelos bancos tradicionais.
Além disso, temos visto casos bastante sólidos de demissão sendo praticados justamente por empresas da nova economia. Contratam como na nova e demitem como na velha.
A conclusão disso tudo é que falta, para as ditas novas empresas, lucro e capital de giro para suportar uma crise como essa. Afinal, não existe almoço grátis: para um negócio ser sólido e permanecer no mercado, ele precisa, sobretudo, dar lucro. Oferecer serviços de graça e depois deixar consumidores na mão, ou ainda, correr o risco de quebrar e colocar milhares de pessoas no olho da rua, isso sim, é bastante disruptivo.
Eu sempre tive a impressão que, a pretexto de cultura, propósito e valores como inclusão e diversidade, algumas startups e novas empresas disfarçavam uma forma agressiva de conduzir negócios. A quebra da concorrência é justificada pelo fato de que as empresas que perdem são lentas, retrógradas, não adotam tecnologia. O desrespeito à legislação é justificado pelo fato de o negócio ser disruptivo e assim vai.
Algumas vezes, este pitch faz sentido. Outras vezes, parece ser pura enganação.
As startups e o “ecossistema” de inovação são importantes. A forma de fazer negócios precisa evoluir e não podemos ir contra a maré, entretanto, é notório que o coronavírus fez mais pela digitalização do que todas as empresas da nova economia juntas, e está cada vez mais claro que não podemos abrir mão do Estado, que é quem está socorrendo a economia em escala global. Sempre fui a favor do liberalismo, mas precisamos tomar cuidado com o desejo de ter cada vez menos governo, porque, nessas horas, aparentemente, ficar na mão da iniciativa privada parece bastante ruim e ficar na mão das startups parece pior ainda.
Algumas mentes pensantes já estão chegando a esta conclusão, como evidenciado por um recente artigo do MIT Technology Review, intitulado, em livre tradução, “COVID-19 Acabou com o Mito da Inovação no Vale do Silício”.
Portanto, precisamos abrir os olhos para o verdadeiro propósito das empresas medido por suas ações reais, e não por promessas vazias de um mundo melhor.
Quando a nova economia se provar por si só, e não depender mais da velha, será porque os dois mundos se fundiram ou apenas uma economia prevaleceu, e não haverá mais uma divisão, mas sim, uma evolução.
Roubei do meu amigo Michael Fukuda
A “Verdadeira Nova Economia”
Existe algo de novo na economia, e não é caracterizado por escritórios que parecem parques de diversão, nem pela disrupção do nosso estilo de vida.
Em verdade, o que estamos observando é uma crescente tensão entre os países, com dedos sendo apontados, como Trump fez ao classificar o vírus como “chinês” (o que não deixa de ser verdade), fechamentos de fronteiras, restrições à imigração e um crescimento muito forte do nacionalismo.
A restrição de exportações também fez parte deste novo deck de cartas, como comprovado pelo bloqueio da Índia a enviar uma série de ingredientes farmacêuticos para fora de seu país.
O nacionalismo, aliás, já sustentava um belo crescimento nos últimos anos com a ascensão ao poder de líderes de direita e a fragmentação de um dos maiores símbolos da ausência de fronteiras, a União Europeia, com a pá de cal sendo jogada pelo Brexit.
A “nova” nova economia reacende conceitos um tanto quanto peculiares para os dias atuais, como a pirataria. Foi exatamente esta a acusação feita aos Estados Unidos depois que “confiscaram” um carregamento de máscaras destinado à Alemanha e ainda por cima adotaram a prática de “suborno institucional”, ao pagar um valor mais alto a fabricantes para que vendam ao seu país equipamentos já comprados por outros.
Consequência disto é o fato de que o Brasil teve que desencadear uma operação de guerra para trazer máscaras da China. Entre as características deste plano estão “estabelecer rotas seguras” (quem diria, pelo Oriente Médio), “evitar paradas na Europa” e, definitivamente, nunca passar pelos Estados Unidos. Se você lesse esta notícia há alguns meses atrás, acreditaria?
Enfim, leitores, sejam bem-vindos à “Verdadeira Nova Economia”. Ela é caracterizada por atos de nacionalismo, reforço de fronteiras, incentivo da produção local em detrimento da globalização (mais CAPEX, menos OPEX), restrição de exportações, suborno e pirataria, apenas em suas primeiras iniciativas.
Quem sabe quantas surpresas ainda teremos em consequência deste novo mundo pós-Covid em que iremos viver? Aguardem cenas do próximo capítulo.
Muito bom e coerente o seu artigo. Concordo e você abordou muita coisa em pouco texto. Parabéns.
Parabéns pelo artigo de fôlego!